terça-feira, 28 de junho de 2016

Flor do cerrado

O texto de Ana Miranda também fez parte do processo de análise de memórias literárias. Nessa narrativa, a autora rememora eventos de sua infância e do processo de mudança de cidade, suas saudades e sensações. Deleite-se com essa leitura!

Flor do cerrado: Brasília
Para lá e para cá
[1] Criança não gosta de mudar de casa. Assim, com o meu coração apertado recebi a notícia de que íamos para Brasília. Eu nunca tinha ouvido falar nessa cidade, Brasília, jamais tinha escutado esse nome, e fiquei sabendo que a cidade ainda nem existia.
[2] “Mas se a cidade não existe, como é que vamos nos mudar para lá?”
[3] Brasília ainda não existia, mas ia ser construída, e ia ser construída por meu pai. Achei papai um herói, construir uma cidade de verdade não devia ser nada fácil. Eu imaginava que ele ia construir Brasília sozinho. Mas ele disse que estava indo muita gente para o centro do Brasil, onde ia ser construída a nova capital.
[4] Eu tinha quatro anos, era uma menina de olhos grandes e duas tranças, que usava vestidos de renda. Muito tímida, calada, eu gostava de olhar livros, ouvir histórias, e desenhar. E sonhava.
Saudades do Ceará
[5] De noite fiquei inquieta, virei na cama para um lado e para o outro, demorei a dormir, e sonhei com Brasília. Brasília era um deserto cheio de lobos uivando e uma lua vermelha no céu. Mas o sonho não me deu medo, era até bonito. Acordei de madrugada e fui olhar pela janela o mar de Fortaleza, as estrelas, os coqueiros na praia.
[6] No dia seguinte fiquei horas com a minha irmã fazendo uma cidade toda de papel recortado, em cima de uma cartolina: as ruas, os prédios e casas, a igreja, até os carros, as árvores e as pessoas andando.
[7] Minha irmã me disse que, de noite, Nossa Senhora veio ao seu quarto, entrou pela janela e ficou parada, em pé, olhando para ela, e contou que Nossa Senhora era fria e nevoenta. Minha irmã também estava com medo de ir embora.
[8] Ia ser difícil deixar a nossa casa em Fortaleza, todos os nossos amigos, primos, tios, tudo ia ficar para trás. Nossa casa era um bangalô, tinha sala disso, sala daquilo, varandas, e no quintal eu podia correr em linha reta até perder o fôlego. A casa tinha andar de baixo e de cima, escada, quartos e mais quartos, e um quarto todo meu, com duas janelas. Tinha árvores no quintal, o jardim da frente era rodeado por uma cerca viva de benjamim, e o chão, coberto de grama.
[9] Mamãe cuidava da casa, ficava o tempo inteiro perto de nós. Papai só chegava à noite, passava o dia trabalhando, ele construía estradas de ferro, com trilhos para os trens.
[10] Tínhamos babá, cozinheira, arrumadeira e moças que minha mãe criava desde pequenas. As vizinhas e as amigas de mamãe vinham conversar, tomar um café com tapioca, ou ouvir minha irmã chorar quando mamãe botava na vitrola a música “Clair de lune”, e a Chiquitinha gritava: “Traz um lenço para enxugar as lágrimas”. Todo mundo ria.
[11] Era uma casa também sempre cheia de crianças, meus primos gostavam de vir, diziam que só na casa de mamãe tinham liberdade. Rolavam lágrimas na nossa casa, mas muito mais alegrias. As costureiras vinham cortar e costurar nossos vestidos, as rendeiras vinham vender suas rendas, os nossos vestidos eram de renda feita à mão. As bordadeiras vinham bordar os vestidos de mamãe, sentavam em roda e estendiam a saia sobre os joelhos, como uma brincadeira de roda, subiam e desciam as mãos pregando as contas, formando flores ou arabescos de brilho. Cantavam, riam, falavam da vida alheia. Uma casa feminina, muitas janelas, luz nas cortinas.
[12] Mamãe gostava de ir aos bailes. Saía de unhas pintadas, colar de ouro e brincos, ou pérolas, ou brilhantes, de cabelos em cachos ela se envolvia num xale de seda e saía com papai, deixando um perfume na sala. A casa então ficava vazia, escura, e eu sentia medo de que mamãe e papai nunca mais voltassem. Minha babá, Odete, me consolava com histórias, beijos, até eu adormecer. Eu precisava dormir cedo para ir de manhã à escola.
[13] O Instituto Christus era a minha escola, onde eu estava aprendendo a ler e a escrever as primeiras letras, a desenhar e a colorir, a cantar e a tocar instrumentos. Eu adorava a aula de música, saltava sobre rodinhas coloridas, cada uma de uma cor, que representavam as notas musicais. Cantava o bê-á-bá, decorava os números, dançava quadrilha na festa de São João e fazia ginástica com bambolês ou lenços.
[14] Nos fins de semana íamos ao clube Ideal, onde nos divertíamos na piscina, no escorrega, ou comíamos no restaurante. No clube, faziam as nossas festas de aniversário. A casa, as pessoas, a escola, o clube, tudo isso ia ficar para trás.
[15] Ia ficar para trás o quintal da casa do vovô e da vovó, os pés de pinha, os galhos onde eu trepava e colhia ciriguelas. As ciriguelas eram as frutas mais gostosas do mundo, porque eram as frutas da minha infância. Tudo perdido... As redes de dormir das minhas tias, onde eu costumava me balançar, e que tinham um cheiro gostoso de perfume e cabelo... A minha madrinha, que me enchia de presentes – pulseira de pedrinhas azuis, corrente com medalha de Nossa Senhora, talismã da sorte...
[16] Será que nunca mais eu ia ver a vovó? Vovó Joaninha era cega, e por isso eu podia ficar olhando para ela muito tempo. Eu olhava a vovó cortando o cigarro pela metade e acendendo, como se enxergasse, ela fazia tudo como se enxergasse, e parece que sabia que eu estava ali perto dela, calada, olhando. Eu ia perder a vovó para sempre?
[17] E as comidas do Ceará? A rapadura, a tapioca branca e fina, o feijão-de-corda, os cajus que deixavam um travo na boca. Será que em Brasília tinha cajueiro? Eu gostava tanto de pôr as castanhas de caju para estourar dentro de uma lata numa pequena fogueira... e minha babá cantava:

Cajueiro pequenino
Carregadinho de flor
À sombra das tuas folhas
Venho cantar meu amor.

Cajueiro pequenino
Carregadinho de flores
Também sou pequenininha
Carregadinha de amores...

[18] E aquele vento sempre soprando...
[19] Os jangadeiros que enfrentavam o alto-mar cheio de barracudas, pavoroso...
[20] E o meu umbigo seco, que minha babá jogara no telhado depois que eu nasci...
[21] E a lua... Será que nas outras cidades tinha a mesma lua? [...]

MIRANDA, Ana. Flor do cerrado: Brasília. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2004. p. 9-15.

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