terça-feira, 28 de junho de 2016

No tempo e no espaço

Como organizar a escrita de memórias literárias? 

Um dos assuntos discutidos com os alunos, nas oficinas realizadas nas aulas, foi a contextualização das narrativas no tempo e no espaço. É importante ajudar o leitor a se situar dentro das lembranças do narrador.

Cada autor, escolhe, dentre suas lembranças, aquelas que foram mais importantes. Os trechos a seguir evidenciam lugares, momentos e eventos marcantes na memória de alguns autores consagrados.

Quando chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando e trazendo baldes, bacias, panelas, penicos e o que mais houvesse para aparar a água que caía e para que os vazamentos não se transformassem numa inundação. Os mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma distração das mais excitantes. 
Fernando Sabino. O menino no espelho. Rio de Janeiro: Record, 1992.


Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40, começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor estado brasileiro (mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca distância de praias muito bonitas.

João Ubaldo Ribeiro. “Memória de livros”, in: Um brasileiro em Berlim.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 105.

Com base nessas leituras e nas passadas, os alunos começaram a elaborar um esquema, em folha de sulfite, anotando exemplos inspiradores para, posteriormente, criarem suas narrativas. Identificaram e destacaram marcadores de tempo, bem como algumas estratégias para apresentação e descrição do espaço.




Depois, analisamos alguns trechos finais de memórias literárias, também disponíveis no material de trabalho da Olimpíada de Língua Portuguesa. Nesses textos, foram observadas algumas escolhas feitas pelos mesmos autores para encerrarem suas narrativas, já que esse costuma ser um grande desafio.

Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando coisas, tudo isso poderia ter realmente acontecido? Terei tido uma infância normal? Acho que sim, também joguei bola, tomei banho nu no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os livros eram uma brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de todas. Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que entonteciam, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, de meu pai, de meus avós, do velho casarão mágico de Aracaju.
João Ubaldo Ribeiro. “Memória de livros”, in: Um brasileiro em Berlim.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 105.
Depois me despeço e refaço todo o caminho de volta até meu quarto. Vou à janela, olho para fora. O que vejo agora é a paisagem de sempre, o fundo dos edifícios voltados para mim, iluminados pelas luzes do entardecer em Ipanema. Ouço o relógio soando a última pancada das cinco horas. Viro-me e me vejo de novo no meu apartamento. Caminho até a mesa, debruço-me sobre a máquina que abandonei há instantes. Leio as últimas palavras escritas no papel: ... até desaparecer em direção ao infinito. Sento-me e escrevo a única que falta: FIM.
Fernando Sabino. O menino no espelho. Rio de Janeiro: Record, 1992.


Esses trechos ajudaram os alunos a perceberem que há diversas formas de se encerrar uma narrativa de memórias literárias, sendo estas duas opções interessantes: o narrador-personagem pode fazer reflexões ou questionamentos sobre os acontecimentos vividos ou, conforme ilustra o segundo exemplo, através de um deslocamento do passado para o presente. 

2 comentários:

  1. A leitura de textos consagrados é importante pois serve de exemplo e de inspiração para as produções que virão. Adorei seu trabalho com os alunos!

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  2. Parabéns, Clau, pela escolha dos textos que servirão aos alunos como modelos e pela oportunidade dada a eles de serem entrevistadores e, assim, poderem ouvir e recontar histórias tão bacanas.
    Enfim, parabéns, mais uma vez, pela seriedade e excelência do seu trabalho e, principalmente, por ter tornado a OLP tão significativa para os alunos. Bjo

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